segunda-feira, 15 de março de 2010

VII - HUMANISMO – NASCIMENTO DA FILOSOFIA MODERNA – séculos XVI e XVII

As obras de Copérnico (1543), Galileu (1632), Descartes (1644) e Newton (1684) realizaram uma mudança profunda no entendimento dos homens sobre eles mesmos e sobre o mundo.

O mundo deixou de ser hierarquizado, ordenado e passou a ser um caos, onde objetos se entrechocam sem nenhuma harmonia. Foi o fim do cosmos grego. Também foram abaladas irremediavelmente as crenças da igreja sobre questões como a idade da Terra, sua posição em relação ao sol, a data do nascimento do homem, das espécies animais, etc.

Sobretudo, nesse período, se desperta uma atitude de dúvida e espírito crítico que enfraquecem as autoridades religiosas e as crenças em geral. Há uma perda de referências entre os mais esclarecidos.

O cosmos não é mais harmonioso, justo e bom, é um caos e não serve de modelo de conduta. A crença em Deus faz água por todos os lados. Nada se ajusta mais. A humanidade estava desorientada. Privados dos cosmos e de Deus, o homem se viu só e voltou-se para si. Daí o nome “humanismo”.

A filosofia moderna teve de empreender uma reforma completa da moral que tinha servido de modelo durante séculos. Os modelos de salvação também não serviam mais e tinham de ser reformulados.

Era necessária uma nova “teoria”. Instrumentos modernos, como o telescópio, provaram que o cosmos era mutável e não de uma imutabilidade eterna, o que era essencial para os gregos já que nele residia a salvação.

Kant, através de sua obra “Critica da Razão Pura” (1781) começa a elaborar a nova teoria. Sendo o mundo caótico, não cabe mais sua contemplação passiva, mas o homem vai interferir, formular teorias, leis que dêem sentido ao mundo. O pensamento é uma participação ativa em que se vai procurar estabelecer laços lógicos entre os fenômenos (principio da causalidade). Nasce o método experimental, que até hoje é a base da ciência. A ordem não é mais dada, mas tem que ser construída. Tudo isso foi elaborado por Kant.

De igual forma, no plano ético, não é possível mais imitar a natureza, é preciso inventar um modelo de conduta. O mundo caótico não pode ser modelo moral para os homens. Todas as questões filosóficas devem ser reformuladas. Sem o divino (seja o cosmos ou Deus) é em torno do homem que isso se dará. Humanismo. É o homem, através de seu pensamento, que vai inserir coerência num mundo caótico. A Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, é uma imagem eloqüente da posição da humanidade como centro da filosofia.

Uma conseqüência dessa centralização do homem foi estabelecer uma outra questão, a diferença entre homem e animal. Se o homem é o mais importante e o único a possuir direitos (DDH, 1789) é necessário elucidar o que o diferencia dos outros seres e até do falecido cosmos.

Aí surge a importante obra de Rousseau, “Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens”, de 1755. Rousseau inova ao estabelecer as diferenças entre homem e animal, conseguindo destacar a principal diferença entre o ser humano e os outros animais, aquela que é a característica própria da espécie humana: a capacidade de se aperfeiçoar.

Os animais não podem fugir de seus instintos, de suas programações naturais. São desprovidos de liberdade e nunca se afastam das regras previstas pela natureza, mesmo quando lhes é vantajoso. Estão presos à sua ordem natural de modo que lhes é limitada a evolução. Em poucos meses de vida o animal já é exatamente o que será a vida toda.

O homem não é nada preso a seus instintos, tanto que freqüentemente viola a natureza por sua vontade e em seu prejuízo, quando come ou bebe em excesso, por exemplo. Mas esta característica também o permite se aperfeiçoar, como pessoa e como espécie. No animal a natureza está presente o tempo todo e fortemente. No homem a natureza também está presente, mas constantemente a liberdade e a vontade imperam sobre a natureza. Um exemplo cultural disto é o regime democrático, que transgride a seleção natural para permitir a sobrevivência dos mais fracos.

Esta característica faz do homem o único animal capaz de fazer o mal pelo mal em si, como projeto.

Luc Ferry acredita que esta capacidade (produzir o mal pelo mal em si), revela a natureza perversa do homem. Parece-me que produzir o mal em outrem, sem motivo ou objetivo aparentes senão o próprio mal, está ligado ao fato do homem conhecer o sentimento de quem sofre e, sabendo que seu inimigo sofre ele se compraz. Reflete o apego ao passado, a incapacidade de se livrar de um mal anteriormente sofrido e que então se eterniza, de modo que o sofrimento impingido ao outro tem o cunho de um revide imediato, exatamente como age qualquer animal. A diferença portanto, não está na maior capacidade de fazer o mal, mas na incapacidade de desapegar-se do passado, no caso específico, a uma agressão sofrida que eternizada pelo apego parece atual e constante, fazendo com que o mal praticado esteja na categoria, como disse, do revide imediato.

Uma primeira conseqüência dessa definição de Rousseau é que o homem é dotado de dupla historicidade: a história de sua vida pessoal, que conhecemos como educação e; a história das sociedades, o que chamamos de cultura ou política.

As sociedades animais, por sua vez, não possuem história. Se voltássemos 10.000 anos no tempo, seria impossível reconhecer Paris ou Belo Horizonte, mas não teríamos dificuldade em identificar um formigueiro ou uma colméia.

A segunda conseqüência reside no fato de que, se o homem é livre, não se pode falar em natureza humana. Nenhuma “essência” prende o homem. Ele pode mudar ao longo da vida e não está condicionado a viver como nasceu, ao contrário dos animais, que estão presos a características das quais não podem fugir. Resulta daí uma magnífica crítica ao racismo e ao sexismo. Se não estamos aprisionados a essência nenhuma não há o menor sentido em se estabelecer características a determinada raça ou sexo. Nenhum ser humano é programado pelas pretensas determinações ligadas a raça ou sexo.

A terceira conseqüência advinda da definição de Rousseau é que o homem é um ser moral. Só se pode imputar boas ou más ações a quem tem liberdade de escolhê-las, o que não acontece com os animais mas é próprio do ser humano, como se viu. Para Kant, Rousseau “foi o Newton do mundo moral”, tamanha a importância de seu trabalho para a construção da nova moral dos modernos.

Para Rousseau animal e natureza são um só, enquanto homem e natureza são dois. O animal se confunde com a natureza, o homem é um excesso, ele é o ser antinatural.

A natureza, portanto, não é nosso código, é preciso inventar ideais, uma distinção entre bem e mal, ética. Baseado nas idéias de Rousseau acerca da liberdade do homem, Kant vai ajudar a formular a nova moral, situando a virtude na ação livre e desinteressada orientada para o bem comum e universal e não para o bem particular. A isso Kant chama de “boa vontade”.

Os dois pilares da nova moral de Kant, desinteresse e universalidade, são expostos em sua obra “Crítica da Razão Prática” (1788).

Segundo o pensamento da época, a natureza nos condiciona a tomar atitudes egoístas, em proveito próprio, e é nossa capacidade de exceder a ela que nos faz tomar atitudes desinteressadas em prol do outro. Se a virtude está na liberdade de uma ação desinteressada (não egoísta) em prol do bem comum (universal), contrariando muitas vezes o interesse particular (determinado pela natureza), os homens estão todos em igualdade, já que todos possuem liberdade, pouco importando os talentos naturais de cada um. A meritocracia triunfa em relação às antigas visões aristocráticas.

A moral, finalmente, não é dada pelo cosmos ou por divindades, mas criada pelo homem. Kant chama isso de “reino dos fins”, porque o homem passa a ser o fim e não mais o meio para realização de objetivos superiores.

No campo político as conseqüências dessas conclusões são a igualdade formal, o individualismo e a valorização da idéia de trabalho.

Sobre a igualdade já falamos. O individualismo é uma conseqüência dessa igualdade. Para os antigos o todo é mais importante que o indivíduo, é o que se chama de holismo. Para os modernos a relação se inverte, porque já não há cosmos e a virtude está na liberdade que cada um possui. O indivíduo não pode ser sacrificado em nome do todo. Cada ser humano é um fim em si, nasce a idéia de individualismo, na medida em que cada indivíduo é valorizado por suas ações “desinteressadas e universais”.

O trabalho, por sua vez, é a forma do homem realizar sua missão na Terra, constituir-se, ajudar a construir o mundo. Para os antigos o trabalho era considerado defeito e era reservado aos escravos. Para os modernos é não só o ganha pão, mas a forma de se exercer a virtude.

Rousseau deu a nova definição de homem e Kant ajudou a formular a nova moral, ambos no século XVIII, mas foi Descartes (século XVII) o verdadeiro fundador da filosofia moderna, com seu “cogito”: “Penso, logo existo”.

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