terça-feira, 30 de março de 2010

IX - Pós modernidade - Nietzsche

Pós modernas são as idéias que a partir do século XIX passaram a criticar o humanismo moderno. Ela será crítica do humanismo e do racionalismo. Nietzsche é seu principal expoente. Heidegger chamou isso de desconstrução.

Nietzsche entende que as ideologias humanistas e mesmo a noção de humanidade dos modernos são ídolos, elevados a uma superioridade artificial, como as crenças religiosas, e nesse ponto não se diferenciam muito. Assim, as mesmas críticas feitas pelos modernos ao cosmos e às religiões também se aplicam a eles próprios. Para os pós modernos a democracia é uma nova ilusão religiosa, entre outras, porque utópica, como de resto são os ideais humanistas. Nietzsche acreditava que a democracia reduzia à mediocridade a humanidade. Para ele, todos os ideais, de direita ou de esquerda, progressistas ou conservadores, religiosos ou não, possuem a mesma estrutura, uma estrutura teológica, já que se trata de inventar algo melhor que a realidade, providos de valores pretensamente superiores e exteriores à vida, portanto, transcendentes.

Nietzsche acreditava que tais invenções eram sempre motivadas por más intenções. Seu objetivo é negar a vida real, tal como é em nome de falsas realidades. É uma negação do real que ele chama de "niilismo". Para Nietzsche não há transcendência e tudo é imanente à vida. Todos os ídolos e crenças só servem para nos afastar da vida. É uma crítica dura aos modernos, muito arraigados às utopias.

O espírito crítico inventado pelos modernos acabou se voltando contra eles. Os pós modernos, filósofos da suspeita, não gostam do consenso, desconfiam das fórmulas prontas, buscam sempre os preconceitos e intenções dissimuladas atrás das primeiras evidências. Nietzsche zombou de toda e qualquer espiritualidade e decretou a morte de Deus. O fundamento de sua filosofia é que não há nada exterior ou superior à vida, nada que escape da mais íntima essência do ser. Materialista, rejeita todos os ideais.

Também sobre a essência íntima do ser, Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, vai no mesmo sentido, apontando que a essência de cada ser se limita a sua existência material e ao que ele é por percepção dos sentidos, recusando a espiritualidade ou a transcendência além de tal conceito.

Desse modo, ninguém pode emitir um juízo de valor desinteressado porque este não pode se abstrair da vida para fazê-lo. Todos os nossos enunciados e sentenças são expressões de nossos estados vitais. Toda idéia não é senão um reflexo do fato de estarmos vivos, daí porque é absurdo entender uma ideologia maior que a vida ou que o homem que a concebeu.

Portanto não existem fatos, mas interpretações, já que o observador não pode escapar ou transcender a vida. Daí a verdade é intangível, inascessível e talvez inexistente.

Nietzsche pensa o mundo quase de modo oposto aos estóicos. O mundo não tem unidade, é uma vastidão de forças infinitas e caóticas. Para ele, mesmo as leis dos modernos que buscam estabelecer alguma ordem ao mundo não são possíveis. Não há ordem e não há consolo, todas as tentativas de explicar o mundo refletem a busca inútil de tornar realidade nossos desejos.

Como se vê, Nietzsche desconstruiu tudo que se tinha feito, contudo, mesmo pra desconstruir teve de partir de algo que foi construído antes. E desconstruindo, acabou construindo outro pensamento. Acredito que ele acertou em algumas coisas, passou perto em outras e errou feio em alguns casos.

Com as idéias pós modernas quero encerrar este pequeno resumo do pensamento e a partir do próximo capítulo expor meu próprio pensamento.

terça-feira, 16 de março de 2010

VIII - PENSO, LOGO EXISTO

Este é o famoso “cogito”. E é muito mais interessante do que pode parecer à primeira vista. Descartes inaugurou o humanismo moderno com esta sentença, ou seja, o princípio da filosofia passa a ser o homem. Descartes inventou este princípio antes que Rosseau e Kant o tenham explicitado.

“Discurso do Método” (1637) e “Meditações Metafísicas” (1641) foram as obras em que ele expôs sua ficção filosófica, onde tudo se questiona, até a existência de objetos concretos exteriores a ele, aventando a hipótese de estar enganado, por exemplo, quanto a estar sentado numa cadeira escrevendo à mesa. Descartes adota uma postura de ceticismo total em que duvida de tudo.

Exceto que, afinal, existe uma certeza que ainda resiste. Se penso, ou mesmo se duvido, devo ser algo que existe. Mesmo que todos os pensamentos estejam errados, ao menos um está certo, pois até para delirar é necessário existir. Penso, logo existo.

Decorreram daí três idéias fundamentais que ocorreram a primeira vez na história do pensamento e que inaugura a filosófica moderna.

Primeira, o critério subjetivo da verdade. É verdade aquilo que o sujeito tem certeza, acima do que está objetivamente demonstrado.

Segunda, “tabula rasa” das idéias do passado. O sujeito é soberano para reformular todas as idéias e rejeitar as regras transmitidas pelos antigos. “Nossa história não é nosso código”, nada nos obriga a respeitar as tradições. Podemos fazer tudo diferente. Para Descartes, não convém dar crédito “se não àquilo de que podemos estar absolutamente certos por nós mesmos”.

Terceira, “é preciso rejeitar todos os argumentos de autoridade”, ou seja, as regras impostas de fora como verdades absolutas por instituições dotadas de poderes que não se pode discutir.

Mas como fica a idéia de salvação numa filosofia que tem o homem como centro, uma vez que este é sabidamente mortal.

A melhor resposta encontrada à época estava nas ideologias e na ciência. Ambos pregavam o ateísmo radical e se agarravam a ideais capazes de dar sentido à vida ou justificar que se morresse por eles.

Os ideais eram sagrados e imortais, daí a velha máxima “morre o homem, mas seus ideais nunca morrem”, o que dá bem a idéia de salvação. Através da ciência, sempre que algum cientista fazia uma descoberta ou inventava um aparelho, sempre que um explorador chegava a novas terras, inscreviam seu nome na eternidade da grande história e assim justificavam toda a existência.

É óbvio que todos esses “ismos” (nacionalismo, patriotismo, cientificismo...) não satisfazem a questão da salvação, pois ainda que os ideais sejam maiores que o próprio indivíduo este sempre perece. Ainda que a humanidade como um todo seja maior que o próprio indivíduo, ela não transcende a ele.

Mas foi o melhor que se pôde fazer à época, sem Deus e sem o cosmos.

segunda-feira, 15 de março de 2010

VII - HUMANISMO – NASCIMENTO DA FILOSOFIA MODERNA – séculos XVI e XVII

As obras de Copérnico (1543), Galileu (1632), Descartes (1644) e Newton (1684) realizaram uma mudança profunda no entendimento dos homens sobre eles mesmos e sobre o mundo.

O mundo deixou de ser hierarquizado, ordenado e passou a ser um caos, onde objetos se entrechocam sem nenhuma harmonia. Foi o fim do cosmos grego. Também foram abaladas irremediavelmente as crenças da igreja sobre questões como a idade da Terra, sua posição em relação ao sol, a data do nascimento do homem, das espécies animais, etc.

Sobretudo, nesse período, se desperta uma atitude de dúvida e espírito crítico que enfraquecem as autoridades religiosas e as crenças em geral. Há uma perda de referências entre os mais esclarecidos.

O cosmos não é mais harmonioso, justo e bom, é um caos e não serve de modelo de conduta. A crença em Deus faz água por todos os lados. Nada se ajusta mais. A humanidade estava desorientada. Privados dos cosmos e de Deus, o homem se viu só e voltou-se para si. Daí o nome “humanismo”.

A filosofia moderna teve de empreender uma reforma completa da moral que tinha servido de modelo durante séculos. Os modelos de salvação também não serviam mais e tinham de ser reformulados.

Era necessária uma nova “teoria”. Instrumentos modernos, como o telescópio, provaram que o cosmos era mutável e não de uma imutabilidade eterna, o que era essencial para os gregos já que nele residia a salvação.

Kant, através de sua obra “Critica da Razão Pura” (1781) começa a elaborar a nova teoria. Sendo o mundo caótico, não cabe mais sua contemplação passiva, mas o homem vai interferir, formular teorias, leis que dêem sentido ao mundo. O pensamento é uma participação ativa em que se vai procurar estabelecer laços lógicos entre os fenômenos (principio da causalidade). Nasce o método experimental, que até hoje é a base da ciência. A ordem não é mais dada, mas tem que ser construída. Tudo isso foi elaborado por Kant.

De igual forma, no plano ético, não é possível mais imitar a natureza, é preciso inventar um modelo de conduta. O mundo caótico não pode ser modelo moral para os homens. Todas as questões filosóficas devem ser reformuladas. Sem o divino (seja o cosmos ou Deus) é em torno do homem que isso se dará. Humanismo. É o homem, através de seu pensamento, que vai inserir coerência num mundo caótico. A Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, é uma imagem eloqüente da posição da humanidade como centro da filosofia.

Uma conseqüência dessa centralização do homem foi estabelecer uma outra questão, a diferença entre homem e animal. Se o homem é o mais importante e o único a possuir direitos (DDH, 1789) é necessário elucidar o que o diferencia dos outros seres e até do falecido cosmos.

Aí surge a importante obra de Rousseau, “Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens”, de 1755. Rousseau inova ao estabelecer as diferenças entre homem e animal, conseguindo destacar a principal diferença entre o ser humano e os outros animais, aquela que é a característica própria da espécie humana: a capacidade de se aperfeiçoar.

Os animais não podem fugir de seus instintos, de suas programações naturais. São desprovidos de liberdade e nunca se afastam das regras previstas pela natureza, mesmo quando lhes é vantajoso. Estão presos à sua ordem natural de modo que lhes é limitada a evolução. Em poucos meses de vida o animal já é exatamente o que será a vida toda.

O homem não é nada preso a seus instintos, tanto que freqüentemente viola a natureza por sua vontade e em seu prejuízo, quando come ou bebe em excesso, por exemplo. Mas esta característica também o permite se aperfeiçoar, como pessoa e como espécie. No animal a natureza está presente o tempo todo e fortemente. No homem a natureza também está presente, mas constantemente a liberdade e a vontade imperam sobre a natureza. Um exemplo cultural disto é o regime democrático, que transgride a seleção natural para permitir a sobrevivência dos mais fracos.

Esta característica faz do homem o único animal capaz de fazer o mal pelo mal em si, como projeto.

Luc Ferry acredita que esta capacidade (produzir o mal pelo mal em si), revela a natureza perversa do homem. Parece-me que produzir o mal em outrem, sem motivo ou objetivo aparentes senão o próprio mal, está ligado ao fato do homem conhecer o sentimento de quem sofre e, sabendo que seu inimigo sofre ele se compraz. Reflete o apego ao passado, a incapacidade de se livrar de um mal anteriormente sofrido e que então se eterniza, de modo que o sofrimento impingido ao outro tem o cunho de um revide imediato, exatamente como age qualquer animal. A diferença portanto, não está na maior capacidade de fazer o mal, mas na incapacidade de desapegar-se do passado, no caso específico, a uma agressão sofrida que eternizada pelo apego parece atual e constante, fazendo com que o mal praticado esteja na categoria, como disse, do revide imediato.

Uma primeira conseqüência dessa definição de Rousseau é que o homem é dotado de dupla historicidade: a história de sua vida pessoal, que conhecemos como educação e; a história das sociedades, o que chamamos de cultura ou política.

As sociedades animais, por sua vez, não possuem história. Se voltássemos 10.000 anos no tempo, seria impossível reconhecer Paris ou Belo Horizonte, mas não teríamos dificuldade em identificar um formigueiro ou uma colméia.

A segunda conseqüência reside no fato de que, se o homem é livre, não se pode falar em natureza humana. Nenhuma “essência” prende o homem. Ele pode mudar ao longo da vida e não está condicionado a viver como nasceu, ao contrário dos animais, que estão presos a características das quais não podem fugir. Resulta daí uma magnífica crítica ao racismo e ao sexismo. Se não estamos aprisionados a essência nenhuma não há o menor sentido em se estabelecer características a determinada raça ou sexo. Nenhum ser humano é programado pelas pretensas determinações ligadas a raça ou sexo.

A terceira conseqüência advinda da definição de Rousseau é que o homem é um ser moral. Só se pode imputar boas ou más ações a quem tem liberdade de escolhê-las, o que não acontece com os animais mas é próprio do ser humano, como se viu. Para Kant, Rousseau “foi o Newton do mundo moral”, tamanha a importância de seu trabalho para a construção da nova moral dos modernos.

Para Rousseau animal e natureza são um só, enquanto homem e natureza são dois. O animal se confunde com a natureza, o homem é um excesso, ele é o ser antinatural.

A natureza, portanto, não é nosso código, é preciso inventar ideais, uma distinção entre bem e mal, ética. Baseado nas idéias de Rousseau acerca da liberdade do homem, Kant vai ajudar a formular a nova moral, situando a virtude na ação livre e desinteressada orientada para o bem comum e universal e não para o bem particular. A isso Kant chama de “boa vontade”.

Os dois pilares da nova moral de Kant, desinteresse e universalidade, são expostos em sua obra “Crítica da Razão Prática” (1788).

Segundo o pensamento da época, a natureza nos condiciona a tomar atitudes egoístas, em proveito próprio, e é nossa capacidade de exceder a ela que nos faz tomar atitudes desinteressadas em prol do outro. Se a virtude está na liberdade de uma ação desinteressada (não egoísta) em prol do bem comum (universal), contrariando muitas vezes o interesse particular (determinado pela natureza), os homens estão todos em igualdade, já que todos possuem liberdade, pouco importando os talentos naturais de cada um. A meritocracia triunfa em relação às antigas visões aristocráticas.

A moral, finalmente, não é dada pelo cosmos ou por divindades, mas criada pelo homem. Kant chama isso de “reino dos fins”, porque o homem passa a ser o fim e não mais o meio para realização de objetivos superiores.

No campo político as conseqüências dessas conclusões são a igualdade formal, o individualismo e a valorização da idéia de trabalho.

Sobre a igualdade já falamos. O individualismo é uma conseqüência dessa igualdade. Para os antigos o todo é mais importante que o indivíduo, é o que se chama de holismo. Para os modernos a relação se inverte, porque já não há cosmos e a virtude está na liberdade que cada um possui. O indivíduo não pode ser sacrificado em nome do todo. Cada ser humano é um fim em si, nasce a idéia de individualismo, na medida em que cada indivíduo é valorizado por suas ações “desinteressadas e universais”.

O trabalho, por sua vez, é a forma do homem realizar sua missão na Terra, constituir-se, ajudar a construir o mundo. Para os antigos o trabalho era considerado defeito e era reservado aos escravos. Para os modernos é não só o ganha pão, mas a forma de se exercer a virtude.

Rousseau deu a nova definição de homem e Kant ajudou a formular a nova moral, ambos no século XVIII, mas foi Descartes (século XVII) o verdadeiro fundador da filosofia moderna, com seu “cogito”: “Penso, logo existo”.

VI - A resposta do Cristianismo e como ele se sobrepôs à filosofia grega – O domínio do Cristianismo até Descartes, século XVII

É importante compreender porque o cristianismo suplantou durante tanto tempo a filosofia. O cristianismo se aproveita das lacunas da filosofia estóica acerca da salvação e a subverte inteiramente. A razão no cristianismo ocupa um lugar subalterno e modesto. É pela fé que se é salvo. Houve um confronto sério entre cristianismo e estoicismo. De toda forma o cristianismo trouxe também inovações, pois aqui a honra do homem se mede pelo uso que dá a seus talentos e não por seus dons naturais em si.

No cristianismo o divino deixa de ser o cosmos e encarna uma pessoa, o Cristo. A razão é limitada pela fé. Somos salvos por uma pessoa e como pessoa. A personalização da salvação é uma idéia muito tentadora. O homem, pessoa, ganha importância em relação à antiga “natureza harmônica e boa”. “Logos” é tomado dos estóicos e se torna “Verbo”. Era absurdo para os estóicos compreender que o “logos”, a ordem universal harmônica e justa, o todo, encarnasse numa pessoa. Houve uma total subversão à definição de divino.

A fé ocupa o lugar da razão e se opõe a ela. Não é a inteligência que importa, mas a fé. Contempla-se o divino pela fé, e não pela razão, pelo uso das ciências. Não se trata de pensar por si mesmo, mas de ter fé num outro. Deve-se ter humildade, ter fé e não questionar, ao passo que são “soberbos” os que questionam com seus raciocínios. A “teoria” aqui não é conhecer o mundo, mas ser humilde para crer. A filosofia, segundo o cristianismo, é por natureza orgulhosa, porque não abandona a inteligência nem a razão em favor da confiança e da fé.

Há uma dupla humildade no cristianismo: A do Deus que se fez homem e mortal; e a do homem, que precisa abandonar sua razão em favor da fé. O cristianismo, nesse sentido, também afronta os judeus, que não admitem um Deus fraco que se deixa crucificar.

É exatamente a fraqueza desse Deus que o faz porta voz dos fracos e oprimidos, que o torna tão notório e simpático a tantos.

Tema recorrente do cristianismo para opor-se à filosofia: humildade cristã x arrogância dos filósofos.

A razão deve ser submissa à fé e servir à religião. Tudo de essencial é resolvido pela fé. Só as questões secundárias são deixadas para a razão. A maior tarefa da razão no cristianismo será interpretar os textos do evangelho, escritos em parábolas ou em sentido figurado, mas nunca questioná-los. Mais tarde tenta-se usar a razão para provar a existência de Deus (São Tomás, século XIII): “Se o universo é perfeito, e aqui concordam com os estóicos, alguém deve tê-lo criado”.

A filosofia se torna então uma disciplina escolar (escolástica) e não uma disciplina de vida, que pudesse dar respostas. A filosofia se tornou um estudo das idéias, ao invés de um aprendizado da sabedoria. Não se praticam mais os exercícios de sabedoria.

LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE – o nascimento da idéia moderna de humanidade.

O cristianismo, no plano moral, apresenta alguns avanços em relação aos gregos. Uma delas a igualdade entre os homens, ao passo que para os gregos, cuja sociedade era baseada na escravidão, os melhores por natureza deveriam estar “acima”.

A sociedade grega era hierarquizada e aristocrática. A natureza obviamente dota os seres de maneira desigual, mesmo entre os homens, alguns são fortes, belos, saudáveis, outros não. E tendo a natureza como exemplo de conduta era conseqüente que os gregos entendessem como natural a hierarquia e a desigualdade. A uns era dado mandar e a outros obedecer.

Já para os cristãos o importante é o uso que se faz das qualidades recebidas e não as qualidades em si. Moral ou imoral é a liberdade de escolha, o livre arbítrio do homem que determina o uso dos talentos naturais. Saímos portanto da aristocracia para entrar na meritocracia, do mundo natural das desigualdades para o mundo artificial da igualdade, feito pelo homem. Mais tarde as filosofias modernas vão adotar esta fórmula.

De fato. As qualidades naturais podem ser usadas tanto para o bem quanto para o mal, portanto a virtude está no uso que se faz das qualidades e não nas qualidades em si. Essa idéia de igualdade do cristianismo é a base da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789 e está na origem da democracia moderna.

Na questão da salvação, o cristianismo não hesita em nos prometer a salvação pessoal, a imortalidade. Como resistir?

Tratando-se de uma salvação pessoal, o cristianismo estabelece uma relação pessoal entre o divino e cada homem, propagando o amor de Deus por cada um de nos, amor este que é maior que a morte. Ao contrário dos estóicos cuja relação com o divino se dava de modo geral com o todo e nunca particular.

O cristianismo, assim como a filosofia e outras doutrinas, também prega o não apego a seres finitos e mortais, mas prega o amor ao próximo em Deus e assim promete a ressurreição.

A imortalidade da alma, a ressurreição do corpo e salvação pelo amor em Deus, esta é a estrutura da doutrina crista. No cristianismo, a própria morte é vencida e não só os medos que ela provoca.

sexta-feira, 5 de março de 2010

V - ESTOICISMO – GRECIA ANTIGA – Um exemplo de filosofia antiga e a fórmula grega para se vencer a morte

Denomina-se “Milagre Grego” o nascimento da filosofia, no século VI a.C. A prática democrática, o pensamento livre, o debate e a argumentação exercidos pelos gregos, possibilitaram pela primeira vez se questionar a salvação prometida pela religião.

Zenão de Cítio foi pai e fundador da escola estóica. Cleanto e Crisipo, seus seguidores, foram outros expoentes do estoicismo antigo. Sêneca foi expoente do estoicismo romano, professor e ministro de Nero, de Epicteto e preceptor de Marco Aurélio.

A teoria no estoicismo é conhecer o mundo. Apresenta-se a idéia de cosmos, o todo do universo como se fosse um ser organizado e animado, como um organismo vivo. O cosmos é harmônico, justo e belo. Tudo é perfeito. Ainda que aconteçam catástrofes estas são passageiras.

O cosmos é o que chamam de divino, e não um ser exterior e superior a ele que o teria criado, como Deus para os judeus e cristãos. Esse divino não tem nada de um ser pessoal, mas se confunde com a ordem do mundo e deve ser contemplado através do estudo das ciências especificas que o permitem conhecer: física, matemática, biologia, etc.

O cosmos é divino, belo e racional. Ordenado e lógico. Divino porque não foi criado pelo homem. O cosmos é harmonioso. Portanto justo e bom. Será então modelo de conduta para os homens, que são parte desse cosmos.

A natureza faz justiça a cada um dotando-o do necessário para viver. Daí vem a fórmula do direito romano, “dar a cada um o que e seu”. A finalidade da vida humana é encontrar seu lugar na ordem cósmica, que é harmoniosa, justa e boa.

O cosmos dos estóicos é transcendente ao homem, porque é superior e exterior a ele, mas imanente ao mundo porque se situa em relação apenas a ele.

Ética é a pratica da teoria, que para os estóicos é ajustar-se aos cosmos, achar seu lugar na harmonia e justeza do cosmos. Esta ética vai influenciar a ciência política e jurídica e é para isto que se desenvolve a teoria, ou seja, o conhecimento do mundo. Em suma, a natureza é em si boa e deve ordenar o comportamento dos homens. O que estava conforme a ordem cósmica era bom e o que o contrariava, era mau. Por isso conhecer o mundo através das ciências para entendê-lo e agir conforme ele, teoria e ética. Só assim se poderia achar o divino, lugar que a cada um cabia no todo. Eis a sabedoria.

A imortalidade se atinge pela procriação, através da descendência, ou por atos heróicos ou gloriosos. Ambos sobrevivem ao homem, mas não são de fato uma vitória sobre a morte. São apenas consolos.

Onde estaria então a salvação proposta pela filosofia?

Para os estóicos, o justo exercício do pensamento e da ação (teoria e ética), a morte é compreendida como uma passagem de um estado a outro na perfeição divina do cosmos, do qual fazemos parte. Eis a salvação, entender-se como uma parte do todo, ocupar seu lugar devido neste todo, através de atos conforme a ordem natural. A morte então não é um aniquilamento, mas um modo de ser diferente, imanente ao todo, que é justo e harmonioso. Atingida tal sabedoria teórica e pratica, a morte deixa de significar o fim e deixa de ser temida. Se o universo é eterno e somos um fragmento dele, também somos eternos.

Mas para tanto é preciso obter a sabedoria através da teoria e ética estóicas, ou seja, vivê-la na pratica. Quatro exercícios práticos de sabedoria foram formulados pelos estóicos:

1. Abandonar a nostalgia (passado) e a esperança (futuro), ligar-se ao presente. “Enquanto se espera viver, a vida passa” (Sêneca). A vida boa é aquela sem esperanças e sem temores, pois a vida reconciliada com o que é, a existência que aceita o mundo tal como é. Essa reconciliação só é possível com a certeza de que o mundo (cosmos) é harmonioso e bom.
2. Aceitar os fatos como são.
3. Não se apegar. “Lembra-te que amas um mortal” (Epicteto). Tudo passa, não compreender isso é preparar para si os terríveis tormentos da nostalgia e da esperança.
4. Realizar cada ação como se fosse a ultima.

Há momentos raros em que nos sentimos reconciliados com o mundo. Nesses momentos de harmonia com o cosmos o tempo não existe. Vencemos o medo da finitude. Fazer a vida toda parecer assim. Eis o ideal da sabedoria. E é conquistada a salvação pela ausência do medo da morte. Então quando o inevitável chegar eu estarei pronto porque me foi dado viver o presente.

Esta sabedoria vigorou até Nietzsche.

O problema da salvação proposta pelo estoicismo é que passamos de um estado pessoal e consciente para um estado impessoal e inconsciente. Fragmentos do cosmos, perdemos nossa individualidade consciente. O estoicismo não sacia nosso desejo, acima de tudo, de reencontrar quem amamos.

O cristianismo não regateia nesta promessa, com isso suplanta a filosofia e domina o mundo ocidental por quase 15 séculos.

quinta-feira, 4 de março de 2010

IV - Por que só nós sabemos que vamos morrer? O que nos difere dos outros animais?

O ser humano parece ter duas características únicas em relação aos outros animais: tem consciência da morte; tem a capacidade de rir. Há quem diga que o riso é a compensação dada ao homem pela ciência da própria morte.

Na verdade essas duas características são fruto de um sistema nervoso complexo, que permite sinapses complicadas, amplitude ao relacionar causas e efeitos, excelente capacidade de memória e de comunicação, enfim, um intelecto poderoso, se assim pudermos resumir.

Mas como o homem desenvolveu tal capacidade intelectual? A melhor explicação dá conta que nossos ancestrais passaram a ingerir em fartura proteína e gordura e tais calorias extras, ao longo de milhões de anos, resultaram num gradativo aumento da massa encefálica e, em conseqüência, das capacidades cerebrais. A melhor teoria sugere que os homens da pré história, usando ferramentas rudimentares como uma pedra ou pedaço de pau, conseguiram triturar os ossos de animais caçados por outros predadores e alimentar-se do tutano, sabidamente rico em proteína e gordura.

Basicamente foi assim, com uma superalimentação, que nosso cérebro cresceu, devagar, como sempre se dá na evolução, e assim ficamos inteligentes. Essa mudança gradativa foi certamente benéfica à espécie.

Você pode perguntar porque outras espécies não fizeram a mesma coisa. Na verdade fizeram. O homem de Neanderthal, por exemplo, era uma espécie diferente da nossa, mas também capaz de raciocínio e fala, fabricar ferramentas e roupas, tinham fé em alguma divindade já que enterravam seus mortos, e dominavam o fogo. Mas foram extintos. Provavelmente por nossos ancestrais que, apesar de mais fracos, eram mais beligerantes e adaptáveis. O homem de Neanderthal é o fóssil vivo, se é que se pode dizer assim, de que a inteligência elaborada e o uso da tecnologia não é exclusividade nossa, ou pelo menos não seria, se nós não os tivéssemos levados à extinção. Aliás, pelas nossas mãos, várias outras espécies tiveram o mesmo fim.

A inteligência, portanto, é fruto da evolução. E tal capacidade é que nos permite tirar conclusões mediante a observação das coisas ao longo do tempo. Até tempos anteriores à nossa existência, já que a linguagem elaborada permite conhecer de fatos que não se viu. É possível estabelecer um padrão das coisas como elas costumam se dar e assim concluir como se darão de fato. E uma dessas conclusões sobre a qual não pairam dúvidas, até porque nunca deixou de acontecer a qualquer ser vivente, é a certeza da morte.

Como conviver com tal certeza? Vencer a morte, eis o maior desejo do ser humano.

terça-feira, 2 de março de 2010

III - O medo da morte

O medo da morte não se apresenta de forma clara. Como tudo que incomoda realmente você, o medo da morte se dissimula, esconde-se em seu inconsciente e te atrapalha a viver.

A morte, para nós, é mais que o fim da vida. É também o fim da vida e principalmente isso. Mas tudo que é irreversível tem para nós o mesmo status de morte.

O medo da morte se revela no apego ao passado, onde moram a nostalgia, a culpa, o remorso, e no apego ao futuro. O apego ao passado e ao futuro nos impede de viver o presente. Mas só o que existe é o presente.

Para a religião é diferente, o que importa é o que virá, a salvação, através da fé. A filosofia duvida disso. A dúvida separa o homem de Deus. Tudo que separa o homem de Deus é “diabólico” (dia-bolos significa em grego aquele que separa).

Com a dúvida desaparece a salvação pela fé e reaparece o medo do irreversível. Para a filosofia, através da razão e da inteligência, pode-se escapar desse medo. Para alguns, as promessas religiosas não são críveis. A existência de Deus parece absurda demais.

As religiões exigem em algum momento o abandono da razão para dar lugar à fé. Filosofar, duvidar, é se negar a abandonar a razão, e preferir lucidez ao conforto.

Filosofia também busca salvação. Sem Deus. Cientes da finitude, a relação com o tempo, como ocupá-lo, como empregá-lo, torna-se importante. Portanto acredito que a filosofia te ensina a viver, como sugere o título do livro de Luc Ferry.

II - Introdução

Todo animal vai morrer. O problema do ser humano é que ele é o único animal que sabe disto. Como conviver com o fato de saber da própria morte? Esta é a questão (dificuldade) número 1 e da qual todas as outras derivam.

Daí o sucesso das religiões que prometem a salvação: “Pela fé alcançamos a imortalidade”. Mas para quem não tem fé permanece o problema. E para viver plenamente é preciso vencer o medo da morte. Como?

Bem, se você é desses que tem fé, recomendo que não continue lendo, mas se a fé religiosa não te safisfaz plenamente, prossiga, se sua paciência permitir.

Para as religiões é possível vencer o medo da morte pela fé em Deus, que é maior que nós. Para a filosofia, contudo, é possível vencer o medo da morte pela lucidez e compreensão. Para as religiões a salvação é por um outro (Deus), enquanto para a Filosofia a salvação, ou seja, vencer o medo da morte, é tarefa que você terá que fazer por si mesmo.

Aqui vale destacar que as religiões não só prometem que você poderá vencer o medo da morte, mas vencerá a própria morte, vivendo eternamente. A Filosofia não te promete tanto. Mas te promete vencer o medo da morte. E sem esse medo você poderá viver a vida que lhe cabe plenamente.

Daí se tem de cara que qualquer filosofia que se preze rejeita a idéia de vida eterna. E rejeitando tal idéia, ouso dizer que qualquer filosofia que se preze é atéia.

Portanto, reitero a recomendação. Se você é crente, abandone esse blog, não é minha intenção estabelecer polêmicas religiosas infrutíferas.

I - Prefácio

Quero apresentar um resumo do pensamento da humanidade, principalmente baseado no livro "A Arte de Viver" de Luc Ferry e depois, ou no decorrer dessa apresentação, expor meu próprio pensamento. Obviamente, sendo alguém do século XXI, levo grande vantagem sobre os pensadores dos séculos anteriores, porque posso ter acesso às suas idéias, às idéias dos que vieram antes deles e às idéias dos meus contemporâneos. Eles, por sua vez, só tinham acesso às idéias dos que vieram antes deles.